A Confraria

Como atesta o documento que adiante se transcreve (Doe. 1, Tombo 1, Masso 1) o Capitão António Espírito Santo Silva e o Gageiro Inácio de Sousa, do Galeão S. Pedro e mais vinte e sete homens da tripulação do navio fizeram o voto de erguer uma ermida a S. Pedro Telmo) em agradecimento pelo milagre que lhes fez durante uma viagem de Londres para o Porto.
Foi o caso que, no caminho, quando chegaram ao mar da Viscaya, um violento temporal lhes partiu o mastro da proa e arrancou todas as velas do mastro grande, destruindo o leme, deixando o navio desgovernado durante três dias e três noites, só amparado pelas tábuas do porão, a meter água em grande quantidade, em risco de se afundar. E tendo o gageiro subido ao mastro real para sondar o horizonte, pediu a protecção de S. Telmo, advogado dos marinheiros e logo a sua imagem lhe apareceu no topo dos mastros, com três faróis acesos, acalmando-se o mar e avistando terra. E depois uma brisa benigna e favorável os levou até ao porto de Vigo, onde desembarcaram. No dia seguinte, foram em procissão, descalços e pedindo esmola, ao túmulo de S. Pedro Teimo a Tuy, onde juraram em agradecimento, levantar uma ermida ao Santo, na sua terra. Consertado o navio aqui regressaram a 20 de Dezembro de 1394 e logo se organizaram em Confraria para dar cumprimento ao voto.
Assim reza o documento.

Pondo entre parêntesis a questão complexa do milagre, há dois pontos concretos e objectivos a reter:
– A Confraria nasceu em cumprimento de um voto religioso.
– A Confraria estava ligada a um ofício – o ofício de marinheiro – e teve por patrono o patrono dos marinheiros.
Com o andar dos tempos foi-se estruturando no sentido de dar sepultura condigna aos marinheiros e apoio moral e material aos seus órfãos e às suas viúvas. Para angariar os fundos necessários a estes objectivos, armou navios e fez comércio sob a sua própria bandeira; e conjugando tudo, – a formação dos seus protegidos e a geração de dinheiro necessário a essa protecção – teve mesmo uma escola de calafates e marinheiros na margem do Douro.
Estas duas dimensões – o ofício e o voto religioso configuram a Confraria das Almas do Corpo Santo de Massarelos como um caso típico do que atrás referimos como a vertente religiosa de uma corporação de classe profissional. E a própria escolha de S. Telmo para patrono mais tipifica o caso. De facto, vinha já de trás a invocação de S. Telmo como patrono de mareantes aparecendo mesmo o seu nome ligado a alguns fenómenos marítimos, como, por exemplo, o “fogo de S. Telmo” que, quase dois séculos mais tarde, Camões celebrizaria em “Os Lusíadas”.
A Confraria nasceu, portanto aqui onde é hoje Massarelos – um local à beira-rio.
No mesmo ano, e pouco antes, nasceu ali bem perto, também na margem direita do Douro, mas um pouco a mais a montante, o Infante D. Henrique.
Natural foi portanto o convite ao jovem príncipe para assumir o papel de Juiz Honorário da Confraria nascente.
Não dispomos hoje de documentos que nos permitam saber qual era a diferença que então haveria entre Juiz Honorário e Juiz de facto. Na sua falta é lícito admitir que a diferença seria aquela que as palavras sugerem lidas à luz do idioma actual: Juiz Honorário seria apenas um título, como o nome diz, puramente honorífico, (eventualmente com alguns atributos sociais) sem direitos nem obrigações de governo da Confraria. É muito provável que o título – pois que só de um título se trataria – se destinasse apenas a garantir para a Confraria a protecção, o interesse e a ligação moral de um membro da Família Real. No caso concreto teria sido o membro mais novo, recém-nascido no Porto – o que provavelmente lisonjearia todos os mercadores e marinheiros do burgo.
Fosse pelo que fosse, D. Henrique deteve aquele título desde muito novo, como atestam velhos documentos da Confraria (nomeadamente os documentos que se transcrevem a seguir a esta “Introdução”). O que deveria ter sido altamente facilitador das conversações que, anos mais tarde, D. Henrique teve que entabular com armadores e marinheiros do Douro para preparar a ida a Ceuta.
Morto o Infante, sempre a Confraria tentou ter como Juízes (Honorários ou efectivos) pessoas de grande valimento nacional e de algum modo ligados à actividade marítima, como eram alguns capitães das Índias, nomeadamente o Conde de Atouguia, D. Luís de Athayde “vencedor dos Samorins” da Índia e que, reza a lenda, morreu de desgosto ao ver Portugal perder a sua independência em 1580, face ao domínio espanhol. Seria, de resto, esta “crise da independência” que traria, de novo a Confraria para a ribalta com vários acontecimentos ligados à resistência contra Espanha.
Como se sabe um dos pretendentes ao Trono de Portugal era o português D. António, Prior da Ordem do Crato, neto do Rei D. Manuel I, mas que foi derrotado pelo seu concorrente espanhol Filipe 11 na batalha de Alcântara. Fugitivo e exilado, D. António ficou sempre como o símbolo dos que queriam um Portugal português e não aceitavam o domínio espanhol. Acontecia, por esse tempo, que a Confraria tinha uma casa que lhe havia sido doada por uma confrade, Correia de Sá – outro apoiante do Prior do Crato que ao lado dele combateu. Um outro confrade, D. Lopo de Almeida, espírito muito caritativo e empreendedor em favor dos pobres, concebeu o plano, de nessa casa, instalar um hospício e tinha¬-o em adiantado estado de preparação quando os bens de Correia de Sá (incluindo a dita casa) foram confiscados por ele ser um seguidor de D. Amónio. Mesmo assim, e noutro local e com maiores dificuldades D. Lopo, em nome da Confraria, levou por diante o projecto.
É ainda por este tempo e por motivo semelhante que se dá um episódio marcante na história da Confraria: o episódio da Praia dos Insurrectos. Como atrás se disse, tinha a Confraria uma pequena frota de navios mercantes com que angariava os bens necessários às suas obras de benemerência e que possivelmente lhe serviriam também de escola de formação de marinheiros. Quando, durante o domínio espanhol Filipe II, decide organizar contra a Inglaterra a “Armada Invencível” e requisita todas as embarcações disponíveis, a Confraria tinha apenas duas ancoradas no Douro: os bergantins “Sra. da Conceição” e “Esmeralda”. Tendo o Juiz Provedor da Confraria Armando dos Santos Couto, transmitido aos marinheiros as instruções de aparelhar às ordens de Espanha, logo ali se revoltaram, queimando a bandeira espanhola e desertando para que os bergantins ficassem imobilizados por falta de tripulação. Daí que a praia fluvial do Douro onde o episódio ocorreu passasse a chamar-se, por designação popular, Praia dos Insurrectos. A resposta das autoridades foi rápida: os bergantins foram tripulados por outros homens, o Juiz Provedor e vários confrades foram presos e a capela revistada e apreendidos vários e valiosos objectos de culto: a naveta e o turibulo de prata e o valiosíssimo colar oferecido em 1579 a N. Senhora da Conceição por D. Luís de Atlayde. Escaparam, porque foram escondidos a tempo, outros objectos como a Custódia Vicentina de que a Confraria muito se orgulhava. Os dois bergantins, integrados na armada espanhola foram incendiados e metidos a pique ao largo da costa inglesa pelo Almirante Drake – como toda a armada dita invencível.
Os restantes navios da Confraria juntaram-se mais tarde à frota que Isabel I de Inglaterra mandou, sob o comando de Drake, em socorro de D. António Prior do Crato, mas que não recebeu em terra o apoio necessário. Portugal só se libertaria do domínio espanhol com a Revolução de 1640. E, entre os revoltosos, lá estava Fernando César Magalhães Negreiros, Juiz Provedor da Confraria das Almas do Corpo Santo de Massarelos. O novo Rei de Portugal, D. João IV, encarregá-lo-ia da construção do Forte do Queijo integrado na linha de defesa marítima contra possíveis represálias espanholas e que é hoje um emblemático monumento do Porto – o Castelo do Queijo assim chamado pela forma do rochedo em que assenta. Era o ressurgir da Confraria em toda a pujança das suas tradicionais actividades assistenciais educativas e marítimas. Assim se mantém, activa e brilhante até às invasões francesas (1807-1810). Novamente pilhada e defraudada, começa a viver com dificuldade de recursos que necessariamente, lhe diminuem a actividade. As lutas civis entre Miguelistas e Liberais agravam ainda mais a situação débil. Até que o triunfo dos segundos lhe extingue definitivamente os privilégios e pouco a pouco os seus navios vão desaparecendo.
Sem bens materiais não pode continuar as suas obras de benemerência e assistência aos filhos e às viúvas de marinheiros; sem navios não pode ensinar a navegar. Toda a sua actividade cessa e com ela o seu prestígio na cidade e nos marinheiros do Douro. Resta-lhe apenas a memória de outros tempos e as honras e benefícios espirituais que a Igreja lhe deu ao longo dos tempos e que o seu pequeno mas valioso arquivo histórico documenta. Até que em 1994 decide dinamizar a nível nacional as comemorações do 6º centenário do nascimento do seu primeiro Juiz Honorário o Infante D. Henrique. Nesse ano de 1994 a Confraria das Almas verdadeiramente renasceu das cinzas.
Tomando o exemplo do Infante, não pretendeu fazer ela própria aquilo para que não tinha força nem saber; mas juntou em torno da ideia da comemoração quem tivesse uma coisa e outra. Congregou vontades; dinamizou poderes; motivou instituições; foi plataforma de convergência de interesses divergentes; moderou tensões. E conseguiu que muitos – homens e instituições – fizessem seu, com igual empenhamento e amor, o projecto da Confraria: comemorar o 6º centenário do Infante fazendo-o reviver com alegria e orgulho na memória de portugueses e estrangeiros, o Porto – cidade berço do Infante e da Confraria jamais esquecerá esse ano de comemorações: começou com uma Missa solene na Sé do Porto onde o Infante foi baptizado; culminou com uma regata internacional que fundeou no Douro centenas de veleiros de todas as tonelagens e nacionalidades; e terminou com a estreia mundial de um poema coral sinfónico à memória do Infante, da autoria do Maestro Peneira dos Santos, executado junto ao seu túmulo no Mosteiro da Batalha. Este foi o último grande contributo da Confraria das Almas do Corpo Santo de Massarelos para a dignificação da História de Portugal e do seu Povo.