Esposende - Roteiro de S. Telmo

Historicamente o culto ao Corpo Santo, ou S. Telmo, existiu em Esposende, talvez trazido pelos capitães dos navios esposendenses que, precisamente em Massarelos, embarcavam para o Brasil e outras possessões ultramarinas por onde o citado culto fora difundido e criara grande devoção. É essa gente marinheira que introduz o culto em Esposende, sem embargo das influências das tripulações galegas que diariamente entravam na barra de Esposende ou os nossos marinheiros que regularmente batiam as Rias Baixas, para onde levavam sal, louça de barro e madeira serrada.
Existem em Esposende, bem conservados e restaurados, exemplares de ex-votos, com o ícone do Corpo Santo e com referência expressa a ele. São da primeira metade do séc. XIX, sendo que um deles poderá ser mesmo dos princípios do mesmo.

 

A DEVOÇÃO AO «CORPO SANTO» em FÃO E ESPOSENDE

A devoção a S. Pedro Gonzalez, O NOSSO S. TELMO, está intimamente ligada ao milagre que se lhe atribui por ter aplacado uma furiosa tempestade quando pregava em Bayona, junto ao mar. Tal como Cristo, o então pregador Pedro Gonzalez ordenou ao vento e aos outros elementos que amainassem, tendo a calmaria voltado para grande espanto dos presentes que logo atribuíram o facto a grande milagre.
Após a morte de Pedro Gonzalez foram-lhe atribuídos uma série de intervenções s relacionadas com tempestades no mar, o que levou a que rápidamente se tornasse no protector celestial mareantes e dos pescadores fluviais.
O seu culto, oriundo de Tuy, veio a espalhar-se pela costa portuguesa e no caso concreto, nas duas localidades da embocadura do Cávado, não só trazido pelos nossos navegantes, mas também pelos próprios galegos que connosco comercializavam o pescado, nomeadamente a sardinha e o sal necessário à sua conserva.
As salinas do Cávado são já referenciadas em 959, nos documentos do Códice de Mumadona. Nessa altura, o rio desaguava em Fão, localidade que ainda no tempo de D. Fernando era considerada um bom porto de mar e centro de importante pescaria. Porém, a partir dos finais do séc. XIV com a invasão de areias e alguns movimentos tectónicos, a barra entrou num processo acelerado e irreversível de assoreamento a pontos de práticamente fechar; a localidade ficou soterrada e os seus habitantes viram-se obrigados a abandoná-la. Apesar da debandada dos fangueiros em direcção a sul, iniciada pelos finais do Séc. XIV, houve alguns que passaram para a margem direita, pois a barra do Cávado abrira-se mais para norte, em frente ao então lugar de Esposende.
Todavia, tal não impediu que Fão voltasse rápidamente ao seu antigo esplendor depois de repovoada por 10 casais a partir de 1412, retomando assim a sua actividade principal, tornando-se novamente num importante centro de pescado que abastecia de peixe toda a região do Minho, através de autênticas frotas de almocreves e seus muares e um notável alfobre de mareantes.
Terra milenar, Fão é também uma terra de lendas, sendo bem conhecidas as de “Ofir”, a dos” Cavalos ” e a do SENHOR BOM JESUS, «irmão do de Matosinhos e do de Barcelos», a quem se fazia – e ainda hoje se faz – grande romaria anual no Domingo e Segunda Feira de Pascoela, com a saída da imagem de 4 em 4 anos, no 1º dia de Maio.
Ora, este mesmo BOM JESUS, a quem se levantavam clamores em tempos de peste ou de seca prolongada, era também conhecido como «Corpo Santo», designação utilizada pela própria Igreja, quando em 1776 o Arcebispo de Braga D. Gaspar de Bragança determinou que na missa solene realizada em honra do «Corpo Santo» não houvesse sermão por causa da enorme afluência de fiéis, vindos de mais de 300 paróquias.(1)
Ainda nos finais do século XIX e princípios do século XX, os fangueiros se referiam às Festas do Senhor Bom Jesus como se elas fossem em honra do «Corpo Santo», tal como se publica no jornal local “O Povo Espozendense “ na edição do dia 2 de Abril de 1896, em que se dizia que iriam ter lugar «Com muita pompa os festejos do “Corpo Santo”, no dia 17 de corrente», para os quais estavam já contratadas para o efeito, duas bandas de música e os célebres “Gigantones e Cabezudos”(2).
Uma semana depois, o mesmo jornal informava que se estavam a preparar «afanosamente os embandeiramentos para os próximos festejos do Corpo Santo»(3)
Em 1905, eram grandes as parangonas que anunciavam: «GRANDE ROMARIA DO CORPO SANTO – ao SENHOR BOM JESUS, FÃO»(4)
Em 1907, o correspondente daquela localidade, lembrava que se realizariam «nos dias 7 e 8 de Abril, em Fão, as festas anuais do CORPO SANTO, em honra da milagrosa imagem do Senhor BOM JESUS, que se venera no Real Mosteiro do mesmo nome.»(5)
Mais concretamente, em 1943, continuava a haver referências a este culto em Fão, embora numa outra perspectiva e noutro local da mesma freguesia, isto, através de um curioso caso citado por Augusto César Pires de Lima sobre um cadáver que teria sido sepultado junto à capela da Senhora da Bonança mas que, afinal, não passava dos restos mortais de «um póveirinho que passava por Santo e aonde pessoa piedosa ia quase quotidianamente acender uma lâmpada de azeite »(6), facto que o autor terá interpretado como sendo uma manifestação do culto ao «Corpo Santo», na esteira da veneração aos chamados corpos incorruptíveis, também vulgarmente conhecidos por «Corpos Santos», como é o caso de Santa Maria Adelaide, S. Torcato, Santinha de Balazar, etc., etc.
Mas então, como se explica que o Bom Jesus de Fão, também fosse conhecido por «Corpo Santo», não se tratando, sequer, de um corpo incorrupto, mas sim de uma imagem?
É na lenda, ou em parte dela, que poderemos encontrar resposta, quando ela nos diz que a imagem do Senhor Bom Jesus entrou pela foz do Cávado e subiu o rio, acabando por encalhar no meio de uns juncais da margem esquerda, onde foi encontrada. O que resta da tradição, já muito esbatida e com pouca gente a confirmá-la, é que nesse local, havia uma pequena ermida, cujas fundações estavam assentes em estacas(7), dedicada ao «Corpo Santo», que foi demolida para dar lugar ao actual Mosteiro do Senhor Bom Jesus nos princípios do século XVIII e daí o Senhor Bom Jesus ter “herdado” o nome do culto antigo, que perdurou até ao séc. XX.
Não se sabe a antiguidade de tal ermidinha, mas é de admitir que ela possa remontar aos finais do séc. XV, princípios do XVI, depois de consolidado o repovoamento ou refundação daquela localidade, começada em 1412.
Na verdade, há documentos do séc. XVII que confirmam que houve em Fão uma Confraria do Corpo Santo, pois, na página quatro do Livro nº 1 de “Mistos”, isto é do livro onde estão registados em conjunto os baptizados, casamentos e óbitos, referentes aos anos entre 1601 e 1767, da Paróquia de São Paio de Fão, estão escritas, pelo mão do vigário Pedro Gonçalves, as obrigações dessa Confraria, que, por força dos seus estatutos era obrigada a mandar dizer por cada irmão falecido, sete missas; uma cantada e seis rezadas, com três salmos e três lições (?) sem laudes, pagando – as a cinquenta reis cada uma, tendo por sua vez, os herdeiros dos defuntos, de pagar ao Vigário, «uma obrada de 5 reis por ela.»(8) . Daqui se pode inferir com segurança que, pelo menos nos princípios do séc. XVII havia em Fão a devoção ao Corpo Santo.
A existência de tal Confraria é ainda confirmada por Lorenzo Galmés num estudo histórico-hagiográfico da vida e do culto do «El bienaventurado Fray Pedro Gonzalez – San Telmo», quando afirma que «En la iglesia paroquial del lugar de Fant, dedicada a San Pelayo, hay una imagen de San Pedro Gonzalez Corpo Santo, en el altar da Virgem del Rosario. Imagem muy antigua y servida por una Cofraria desde tempo imemorial. Fue também un punto de grandes concentraciones populares. Lo mismo se pude decir de la Villa de Esposende».(9)
A par de outras localidades «que participaram idêntico entusiasmo pela figura do Corpo Santo», e embora não sendo das mais importantes, diz Galmés, Fão e Esposende, «cumpriram uma função» e que por essa razão devem ser recordados.
Na verrdade, a devoção ao Corpo Santo, que permaneceu até há pouco tempo na memória das gentes de Fão, embora já sem qualquer manifestação religiosa ou profana, não era exclusiva daquela localidade, pois, no outro lado do rio, já bem perto da nova foz do Cávado, muito possivelmente trazida e mantida por aqueles que não tendo seguido a vaga migratória para sul, se estabeleceram na sua margem direita, também o culto ao Santo se manifestou desde cedo, ampliado pelos contactos com a Galiza.
O facto de a barra do Cávado se ter mudado mais para norte, passando definitivamente a ser a que hoje é, deu origem a que um pequeno povoado de pescadores/ lavradores, como era Esposende, rapidamente se tivesse desenvolvido de modo a ter, no séc. XVI, uma razoável frota de navios de comércio, especializados na cabotagem e na pesca longínqua – da toninha e do bacalhau -, uma pescaria costeira florescente e uma notável indústria de construção naval, passando assim de simples lugarejo, a ter gente arruada, rica e abastada, donos de setenta para oitenta navios de alto bordo a que chamavam caravelas na foz do Cávado, tal como reza a Carta Régia com que D. Sebastião a separou da todo-poderosa Barcelos, em 19 de Agosto de 1572. E tão importante se tinha tornado o lugar de Esposende, que em 1542, D. João III aí mandara instalar uma Alfândega Régia e em Fevereiro de 1552, os seus navios são objecto do célebre “Levantamento” que o mesmo monarca mandara elaborar ao licenciado Nicolau de Almeida, Ouvidor do Duque de Bragança, quem esteve presente e fez o arrolamento requerido a propósito do aviso feito aos navegantes de Esposende, Darque e Fão, para não navegarem para ocidente, por causa da pirataria francesa.
Nesse rol, é citado o mestre Bastião Luís, como proprietário de uma caravela de 40 pipas de arqueação, que ao tempo se encontrava em Lisboa. A caravela, tinha como invocação “O Corpo Santo”.
Além desta caravela que se encontrava fora do porto de Esposende, um outro navio, desta feita um “patacho”, pertencente ao mestre António André e a Domingos Gonçalves, estava em Sevilha. Arqueava 180 pipas e tinha a mesma invocação: “O Corpo Santo”.
Em 19 de Junho de 1565, Pero Fernandes e António Rodrigues, tanoeiros em Vila do Conde, fretaram o navio “Corpo Santo” que na altura estava ancorado em Vila do Conde, a Domingos Gonçalves, morador em Esposende, seu mestre e senhorio, para ir ao Funchal levar mercadorias.
É muito possível que seja o navio arrolado em 1552, pois um dos donos, tem o mesmo nome. Se assim é, ou foi, por aqui se pode aquilatar da durabilidade dos navios daquela época, pois, este teria na altura, pelo menos 13 anos. Todavia, creio tratar-se de um navio novo, ao qual foi dada a mesma invocação, como tantas vezes aconteceu ao longo dos séculos.
É notória a presença da invocação ao «Corpo Santo» na onomástica religiosa das embarcações de Esposende em meados do séc. XVI.
Das oito embarcações esposendenses que no mês de Setembro de 1566, LEVARAM SAL PARA OS ARMAZÉNS GALEGOS DAS RIAS BAIXAS, quatro tinham a invocação do «Corpo Santo». Eram duas caravelas, um caravelão, e um barco de pescar(10) que suponho seja uma lancha do tipo das que mais tarde se veio a chamar, «lancha carreteira».
Em 16 de Setembro de 1697, o capitão esposendense Manuel Barbosa Maciel, passou uma procuração a Estêvão da Luz, de Lisboa, a quem deu poderes de negociação para junto dos ingleses receber a indemnização devida pelo afundamento do seu navio “S. TELMO e Santiago”, que tinha sido metido a pique por um navio inglês.(11)
Sebastião de Lima Faria, era um capitão esposendense que fazia a rota do Brasil e que lá morreu em 1 de Dezembro de 1709, na Baía de Todos os Santos. Em 1698, Sebastião de Lima, como era conhecido, era capitão do seu navio “Nossa Senhora da Franqueira e Corpo Santo”.
O Visitador, Padre Manuel de Passos Figueiroa, na Visita que fez à Igreja Matriz de Esposende em 10 de Setembro de 1718 incumbiu «os irmãos da Confraria de Santelmo- termo que aparece pela primeira vez – de mandar pôr uma pedra de ara no altar e cortar meio palmo à largura do supedâneo e meio à altura, porque este «estava disforme».(12)
É a esta Confraria que Monsenhor Baptista de Sousa, Pároco de Esposende durante mais de 30 anos, se refere quando supõe tratar-se de uma única Confraria, usando um ou outro nome (S. Telmo ou Corpo Santo). Fala-se desta Confraria, diz, na Visitação de 1718. Porque se refere a uma pedra de ara e supedâneo, concluímos que teria altar próprio.(13)
Também em 1718, dois meses após a “Vizitação”, numa reunião da Mesa da Santa Casa da Misericórdia havida em 13 de Novembro, é lavrada uma acta que regista, dentre as deliberações tomadas na ocasião, uma em que se «acordou que se trocasse o cálice grande por ser muito disforme e incapaz de se celebrar Missa com ele, por outro que se ia a desfazer para o acrescentamento da custódia que era da Confraria do Corpo Santo, por ser mais acomodado e capaz para o dito ministério e útil para a Santa Casa, por razão de ser dourado e ser bem feito(14). o que leva a crer que tanto na Igreja Matriz, como na Misericórdia, havia o culto ao Corpo Santo, o que é perfeitamente natural, já que a Misericórdia era uma instituição autónoma, embora da esfera da Igreja.
Na verdade, existiu uma Capela na Matriz, pois, o cadáver do capitão-mor das ordenanças de Esposende João da Costa Barros Pereira, «foi sepultado na Capela do Corpo Santo dela», no dia 1 de Dezembro de 1735, tal como reza o respectivo assento de óbito.(15) Também nas Memórias Paroquiais de 1758, relativas à Vila de Esposende, é dito que a Igreja Matriz tinha sete altares dentre os quais o de São Pedro Gonçalves, todos eles com suas Confrarias. Mais tarde, na Visitação de 9 de Julho de 1805 é dito claramente que a Capela do Corpo Santo estava situada no lado norte da Igreja Matriz. Nessa altura encontrava-se «indecente e em estado lamentável» segundo o Visitador Padre António Luís Pereira, que determinou que os oficiais do Subsino, sob pena de 4.000 reis pagos das suas bolsas, tinham que mandar forrar o tecto, fazer um novo RETÁBULO e tapar de parede o arco que está para a Capela Mor da Igreja, deixando uma porta para a mesma ou pôr nova grade de ferro ou de pau, no lugar da que existia e que estava indecente.(16)

Na ocasião das invasões francesas, esta Confraria tinha uma cruz de pendão e em prata, embora já quebrada.(17)
E se mais não houvesse no séc. XIX que atestasse a devoção ao Corpo Santo em Esposende, teríamos em último recurso o bem conhecido painel votivo de cinco quadros, ofertado a Nossa Senhora da Soledade e ao Santo Corpo Santo, pelo capitão Miguel Ribeiro dos Santos da Vila de Esposende, em 1847.
Este ex-voto representa cinco situações em que este capitão esposendense se achou em grandes dificuldades no mar, entre 1832 e 1846, quando governava outros tantos brigues; ocasiões em que recorreu à protecção e intercessão da Senhora da Soledade e do Santo Corpo Santo, ícones devidamente retratados nos cantos direito e esquerdo, respectivamente.
A todo o comprimento da tábua votiva e por cima das legendas pode ler-se o “ofertório”:
«Milagres que fez Nº. Srª da Soledade e o Santo Corpo Santo ao Capitão Miguel Ribeiro dos Santos da vila de Esposende, governando estes navios – feito em 1847.»
«Notabilíssimo» – é como o investigador Geraldo A. Coelho Dias se refere a este ex-voto, que actualmente se encontra no Museu de Arte Sacra de Esposende e esteve representado na XVII Exposição Europeia de Arte Ciência e Cultura, realizada em Lisboa em 1983.
O autor salienta, que não deixa de ser sintomático o facto de ser ofertado a S. Telmo por um homem do mar(19) , quando, na verdade, acrescento eu, a devoção desta zona é mais virada para a Virgem – é uma devoção Mariana.
O ex-voto em causa, foi pintado em 1847 e nesse mesmo ano entregue na então Capela da Senhora da Soledade, que hoje a divide com a Senhora da Saúde. Aí permaneceu até há cerca de 30 anos, altura em que transitou para o museu de Arte Sacra da Paróquia Esposendense, onde se encontra.
Muitos mais ex-votos existiram e alguns ainda existem dos séculos XIX e XX na Confraria do Senhor Bom Jesus de Fão, embora a invocação da maior parte deles seja a da Senhora da Bonança. Nenhum deles se refere ao Corpo Santo, ao contrário de Esposende, que com este painel demonstra inequivocamente a existência desta devoção ainda no séc. XIX, cuja Confraria ainda é dada «como participante na Procissão do Senhor aos Enfermos, no ano de 1897».(20)
A partir daqui, a devoção ao Santo Corpo Santo foi perdendo força no seio da classe mareante local que era praticamente toda embarcadiça em navios de longo curso. Para tal não terá sido alheio a perda de importância do seu porto, devido ao assoreamento quase total e a revolução havida nos meios de propulsão das grandes embarcações, que passaram ser movidas a vapor, em vez do vento, o que diminuiu substancialmente a exposição ao perigo.
Mas se do mar alto ela foi quase “esquecida” pela marinhagem, o mesmo não aconteceu tão rapidamente nos homens da pesca costeira, os pescadores, tal como nos revela uma curiosa atitude das suas mulheres, que me foi transmitida por uma senhora amiga, filha de um dos mestres mais carismáticos da Ribeira de Esposende.
Contou-me ela há uns bons anos, várias histórias relacionadas com pescadores, naufrágios e milagres de Nossa Senhora e de outros Santos, que já sua avó lhe havia contado e ela não tinha esquecido. Pedi-lhe – ela sabia escrever – que passasse para um papel essas histórias, pois, um dia alguém havia de tomar conhecimento delas. Assim o fez, com a espontaneidade e a linearidade da gente simples que fala das suas coisas e eu guardei o papel à espera de uma oportunidade para o tratar.
Uma dessas histórias, que eu considero de precioso valor etnográfico, conta que quando o mar “era muito”, os nossos pescadores procuravam, o mais rápidamente possível, vir para terra, mas a barra – sempre a barra! – não lhes garantia entrada em segurança e quando assim, logo tentavam abrigar-se entre os Cavalos de Fão e a Praia, à espera de um milagroso “raso”, que lhes permitisse varar a embarcação a salvo. Eram momentos de enorme angústia e penoso desassossego colectivo, que infelizmente, em muitos casos tinham como desfecho trágicos naufrágios, presenciados pelos próprios familiares que se encontravam na praia.
Ora, segundo o relato escrito que eu guardo, era em ocasiões como estas que as mulheres dos pescadores, antes de atravessarem o rio para o Cabedelo em frente a Esposende, iam à Igreja Matriz e “roubavam” um bocadinho de azeite da lâmpada do Santíssimo Sacramento, para que uma menina, com uns oito ou nove anos que levavam para junto do mar, aspergisse as ondas com umas gotas desse azeite “santificado”, ao mesmo tempo que dizia:
Ó Mar, tem-te em ti,
Que o Santo Corpo Santo
E a c’roa de Nossa Senhora,
Tem mais força de qu’a ti!
Como se sabe, o óleo, neste caso o azeite, derramado nas ondas, desencadeia uma reação química que lhe “tira a força”… e este acto praticado pelas mulheres de Esposende tem algo a ver com que o S. Pedro Gonçalves fez em Bayona … para acalmar os elementos em fúria!
Foi esta a última referência que encontrei e que considero um notável testemunho do resquício da devoção dos esposendenses ao Santo Corpo Santo, que também por aqui teve devotos desde o séc. XVI e que se extinguiu completamente em meados do séc. XX, pois, a partir de 1902, a devoção à Senhora da Saúde passa a ser, manifesta e ferverosamente a principal dos homens do mar de Esposende – daí a gente da Ribeira recorrer à “coroa de Nossa Senhora” sempre que em horas de grande aflição não esquecendo, porém o seu antigo protector , o «Corpo Santo», ou seja São Telmo..

Esposende, 2016
José Felgueiras

1) Citado por Augusto César Pires de Lima in
2) “O Povo Espozendense”, nº 194, de 2 de Abril de 1896, pág. 4
3) “O Povo Espozendense” nº 195 de 12 de Abril de 1896, pág. 2 – a data correcta é 12 e 13.
4) “ O Povo Espozendense”, nº, 656 de 12 de Março de 1905,pág. 3.
5) “O Espozendense”, nº 24 de 10 de Março de 1907, pá.2
6) Almanaque de Espozende de 1896, pág. 100
7) O terreno era pantanoso e facilmente inundável pelas frequentes cheias do Cávado. Era uma zona de paúis. O actual Mosteiro do Bom Jesus também está assente em estacaria, pelo mesmo motivo.
8) Abreu, Prof. Doutor Alberto Antunes de – O Arquivo e as origens da Santa Casa da Misericórdia de Fão – Esposende 1988, (Doc. 30), pág. 241
11) ADB- Nota Esposende, Vol. 209
12) A.P.E. (Arquivo Paroquial de Esposende) – Livro das Visitas (1679 a 1727), pág. 43v
13) Sousa, Monsenhor Manuel Baptista de, “História Religiosa da Paróquia de Santa Maria dos Anjos -cidade de Esposende”, II volume; Agosto de 1993, pág. 189.
14) AHSCME – Livro de Actas -1718, pág. 60
15) ADB – Arquivos Paroquiais- Santa Maria dos Anjos da Vila de Esposende
16) A.P.E (Arquivo Paroquial de Esposende) -Livro das Visitas (1777 a 1872), pág. 36
17) Sousa, Monsenhor Manuel Baptista de, “História Religiosa da Paróquia de Santa Maria dos Anjos -cidade de Esposende”, II volume; Agosto de 1993, pág. 189.
18) Foto do Estúdio Foto-Flash/Esposende.
19) Dias, Geraldo A. Coelho. “Religiosidade e devoção das gentes do mar de Esposende”- Portugália -1886/1997, pág. 253
20) Sousa, Monsenhor Manuel Baptista de, “História Religiosa da Paróquia de Santa Maria dos Anjos -cidade de Esposende”, II volume; Agosto de 1993, pág. 190.

 

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