Transladação da Relíquia para Massarelos em 2005

A 12 de Junho de 2005 foi translada da Catedral de Tui para a Igreja do Corpo Santo de Massarelos uma relíquia do Padroeiro desta Confraria.

Nessa Cerimónia que uniu na fé Tui e Massarelos o Senhor D. Armindo Lopes Coelho, à data Bispo do Porto, proferiu a seguinte homilia:

“A fé é um dom, uma luz, que nos permite distinguir na História da humanidade uma História de Salvação, salvação que a pessoa humana deseja e que Deus teve a iniciativa de prometer e concretizar.
Libertado e a caminho de uma libertação mais completa, o Povo de Deus ouviu o seu mediador (Moisés) avivar-lhe a memória em nome de Deus: “Vistes o que Eu fiz… se ouvirdes a minha voz e guardardes a minha aliança, sereis minha propriedade especial entre todos os povos” (Cf. Ex. 19, 2-6).
Compadecido das multidões, “fatigadas e abatidas, como ovelhas sem pastor”, Cristo equacionou o problema com os discípulos e deu comissão aos Doze para irem em seu nome dar resposta às ansiedades, angústias e sofrimentos. E credenciou-os com sinais de credibilidade: expulsar demónios impuros, curar as doenças e enfermidades, ressuscitar os mortos. Estes sinais dar-lhes-ão oportunidade e coragem para proclamar “que está próximo o reino de Deus” (Cf. Mt. 9, 36-10, 8).
E quando nos sentimos afectados por dúvidas ou pelo desânimo, recorremos à fé, que reavivamos: Cristo morreu por nós, e Deus prova assim o seu amor para connosco. Alcançamos em Cristo a reconciliação, e estamos sem dúvida em esforço de reconciliação permanente, gradualmente mais perfeita (Cf. Rom. 5, 6-11).
E a nossa fé em Deus e em Cristo é lógica e consequentemente a fé na Salvação em processo ao longo da história, processo que culminou com Cristo e a sua Igreja – a Igreja dos Apóstolos que Cristo credenciou, através de prodígios e milagres, para anunciar a Palavra, convocar discípulos, fazer comunidade e comunhão, santificar e conduzir pelos caminhos da dignidade humana e segundo os valores do Evangelho.
No nosso tempo a Igreja diz de si mesma que, apesar de constituída por pecadores, “é indefectivelmente santa” (L.G. 39). E ensina: “todos quantos se vêem oprimidos pela pobreza, pela fraqueza, pela doença ou tribulações várias, e os que sofrem perseguição por amor da justiça, saibam que estão unidos, de modo especial, a Cristo nos seus sofrimentos pela salvação do mundo” (L.G. 41). É assim que a Igreja fala de si mesma, de cada um de nós, do passado em múltiplas circunstâncias, de sofrimento e de milagres, de pedidos e promessas, de santos e taumaturgos, de história comprovada e de tradições religiosamente conservadas, de peregrinações e devoções, de patronos, padroeiros, de peregrinos e devotos, da história que escrevemos e aprendemos, de uma Igreja que atravessou dois milénios de Cristianismo e de vida, inculturando-se ou vivendo paralelamente, influenciando ou sobrevivendo. A História do Cristianismo é a História das pessoas e das expressões, funções e missões, vivência e memórias que a Igreja comporta e abrange.
É neste espírito e com esta consciência que falamos de S. Telmo.
S. Pedro González Telmo (nós dizemos S. Pedro Gonçalves Telmo), nasceu em Frómista (Palência) (outros dizem em Astorga) pelo ano 1190. Terá falecido em 1243 (ou 1246). Sobrinho de um bispo, foi muito novo nomeado cónego, e chegou a deão. Certo acidente daquela vida jovem e despreocupada provocou-lhe uma mudança profunda. Fez-se dominicano, passando a ocupar o tempo na pregação e no ministério da confissão. Também participou em campanhas contra os mouros, ao lado do rei, mas a sua vocação e preocupação religiosa fê-lo passar por Compostela, Lugo, Ribadávia, Amarante (Cf. Tradição de S. Gonçalo) e principalmente Tuy, onde morreu.
A esta actividade de pregador está ligado o milagre que se lhe atribui. Estando a pregar, em Bayona, enfrenta uma tempestade que perturba o ambiente. Como Cristo, segundo os Evangelhos, Pedro González imperou ao vento e aos outros elementos. E voltou a tranquilidade e a bonança.
É o padroeiro dos marinheiros e mareantes.
Pela mesma época, este centro cultural e cultual de Massarelos, dedicado a Nossa Senhora da Boa Viagem, dependia da Colegiada de Cedofeita, até se tornar freguesia autónoma.
O século XII, nesta área do Porto, estava organizado socialmente à base de corporações (de artes e ofícios) e de confrarias. Tendo começado as respectivas histórias em proximidade e paralelismo, foram-se depois separando, reservando-se as confrarias para o bem das almas.
Segundo documentação transcrita em arquivo, no ano de 1394 um galeão com o nome de S. Pedro dirigia-se de Londres para o Porto, comandado pelo Capitão António Espírito Santo Silva, sendo gajeiro Inácio de Sousa, com uma tripulação de mais vinte e sete homens,. Tendo chegado ao mar da Viscaya foram surpreendidos por um violento temporal que fez correr perigo a vida de todos os passageiros. Invocaram S. Telmo, e logo a sua imagem apareceu no topo dos mastros com três faróis acesos. A tempestade acalmou, seguiram viagem e aportaram em Vigo. No dia seguinte dirigiram-se a Tuy agradecer a S. Telmo junto do seu túmulo. E prometeram erguer uma ermida na sua terra, aqui, onde chegaram em 20 de Dezembro de 1394.
Foi na ermida de S. Pedro Telmo, anterior a esta igreja do Corpo Santo de Massarelos, que teve origem, em 1394, a Confraria das Almas do Corpo Santo de Massarelos. Nasceu de um voto religioso e estava ligada ao ofício de marinheiro, sob a protecção de S. Telmo, padroeiro dos marinheiros.
No mesmo ano de 1394 nasceu e foi baptizado no Porto o Infante D. Henrique, o Navegador. Sendo uma confraria de irmãos, dedicada ao bem das almas a à ajuda dos necessitados, esta Confraria teve a preocupação e a dita de atrair irmãos qualificados. O Infante D. Henrique foi juiz honorário da Confraria das Almas do Corpo Santo de Massarelos. Foi irmão da Confraria D. Lopo de Almeida, cujo nome ficou para sempre ligado à institucionalização dos cuidados de saúde, através do Hospital de Santo António.
O nosso poeta Camões transporta-nos à visão trágica dos mares em revolta para nos tornar presentes os milagres e a protecção de S. Temo:
“Vi, claramente visto, o lume vivo
que a marítima gente tem por santo,
em tempo de tormenta e vento esquivo,
de tempestade escura e triste pranto.
Não menos foi a todos excessivo
milagre, e cousa, certo, de algo espanto,
ver as nuvens, do mar com largo cano,
sorver as altas águas do Oceano.” (Canto V, 18)
Evocada a história e lembrados os elos de ligação entre Tuy e Massarelos, pela analogia do milagre e pela protecção de S. Telmo, que de algum modo faz comum a história marítima e a fé dos marinheiro das nossas pátrias, agradecemos a S. Ex. cia Rev. ma o Senhor Bispo de Tuy-Vigo e a toda a Comitiva presidida pelo senhor Bispo Emérito de Tuy-Vigo a mercê que nos fazem de nos doar e trazer uma relíquia de S. Pedro Telmo, a fim de podermos deste modo refazer a relação que aqui foi lembrada.
Foi também uma oportunidade para evocar a história, a tradição, autêntica ou legendária, que envolve a figura de S. Pedro Gonçalves Telmo. Devo confessar que não estou angustiado por não conhecer toda a verdade ou realidade da riquíssima simbologia que sugerem a tradição, a literatura, hagiográfica ou não, e as próprias artes plásticas. Tem especial significado a tríplice luz dos faróis como afirmação da Trindade de Deus em tempo da crise albigense. Como permanece o mistério do “fogo de santelmo”, referido na tradição, na hagiografia e, em termos textuais, nas definições dos dicionários normais: “Pequena chama, devida à electricidade atmosférica, que aparece ocasionalmente na extremidade dos mastros e das vergas dos navios ou nos filamentos dos cabos”; ou “lume vivo” (Cf. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, fogo-de-santelmo).
A natureza no complexo das criaturas e dos fenómenos, as tradições e os símbolos, os sentimentos e todos os constituintes da beleza coexistem com a fé na profundidade do mistério e na amizade dos povos que têm consciência de serem uma única família.
É este o sentido do nosso testemunho comum, hoje.”