A Confraria do Corpo Santo de Câmara de Lobos teve sede na capela de Nossa Senhora da Conceição, construída pelo povo, próximo ao varadouro dos barcos. Foi uma associação de socorro da classe piscatória, moldada no compromisso do Corpo Santo. Os seus primitivos estatutos datam de 18 de Agosto de 1691.
Os estatutos constituem um interessante documento da época, cheio de crença e de amor pelo próximo que se transcrevem de seguida:
“Considerando os pescadores e mareantes do lugar de Câmara de Lobos, o grande fruto e proveito que resulta aos fiéis cristãos que com zelo e ânimo devido empregam as suas obras ao serviço de Deus e dos seus Santos, e havendo muitos anos que têm, na ermida de Nossa Senhora da Conceição do dito lugar, a imagem do Corpo Santo – o Glorioso Santo Frei Pedro Gonçalo Telmo, advogado dos mareantes e pescadores, a quem todos os anos fazem sua festa; e desejando por em melhor forma e ordem e erigir e criar de novo sua irmandade pela mesma forma e com o mesmo compromisso que tem e se observa na Irmandade da Confraria do Corpo Santo, confirmada pelo ilustríssimo e reverendíssimo senhor bispo, com sua autoridade, para que a devoção dos fiéis e o culto divino seja aumentado, ordenaram o compromisso e irmandade seguinte, para com isso terem por advogado e seu intercessor diante de Deus, ao Corpo Santo, o Glorioso Frei Pedro Gonçalves Telmo, e suas almas serem ajudadas com as missas e sufrágios deles, confiando que ainda nesta vida lhes comunicará Deus seus bens, sendo liberais nas esmolas por sustentação desta santa confraria e irmandade, conforme ao Evangelho que diz: receberão cento por um e possuirão a vida eterna.
1- Ordenarão que nesta irmandade e confraria não entrem senão homens do mar e pescadores e que seja administrada e erigida por três mordomos e um escrivão e arrecadador de confiança e respeito, eleitos por eles aos mais votos, presidindo o vigário, o qual procurará que todos tenham seu dito giro ao serviço do santo, com os respeitos que se requerem, do proveito e aumento da confraria, procurando as esmolas de cada arrás dos barcos, ou cada dia, ou no fim da semana, como mais conveniente for, que o escrivão terá cuidado de lançar em livro, com clareza, do que vende cada barco, e assinarão a carga e a descarga; e a eleição se fará no dia do Santo, depois de vésperas e a ela acudirão todos os irmãos que não forem legitimamente impedidos tanto que ouvirem o sino ou campana da confraria se o tiver, e se o não tiver, o da sua paróquia, sob pena de pagar meio tostão o que faltar, para a confraria, em que será executado pelo vigário, a instâncias dos mordomos. Ordenarão que no dia de S. Frei Pedro Gonçalo Telmo celebrem os mordomos suas festas, o mais solene que for possível, com vésperas e missa cantada de diácono e subdiácono, e com pregação, e darão aos beneficiários a esmola costumada, e que todos os domingos do ano e festas, mandem dizer no altar do santo, uma missa rezada pelos irmãos e benfeitores da confraria, de que outro sim darão a esmola costumada, e os mordomos assistirão a ela com cuidado, e os irmãos que no lugar se acharem.
2- E para que esta confraria e irmandade cresça assim nos benefícios espirituais como no número dos irmãos, ordenarão que de todos os barcos de pesca, se tire um meio quinhão e da mesma sorte das viagens que fizeram e se entregará a dita esmola com toda a inteireza e verdade e se assentará por adições com distinção e clareza no livro que o escrivão tiver, lançando o seu dinheiro na arca de três chaves, de que terá uma o vigário, outra o arrecadador, e outra o escrivão, e o que não concorrer com as ditas esmolas, não gozará dos benefícios e sufrágios da confraria, e permanecendo em seu descuido, poderá ser riscado dela.
3- Ordenarão mais que por estas esmolas sejam obrigados os mordomos mandarem fazer em cada ano, pelo oitavário de todos os santos, na dita ermida, um ofício de nove lições, com vésperas à custa da confraria, com a cera necessária, pelos irmãos defuntos, suas mulheres e filhos e filhas de idade de dezoito anos para cima, estando debaixo da sua proteção, a cada um se lhe fará um ofício de três lições, e aos filhos de dez até dezoito anos, lhes dirão duas missas rezadas por alma, e aos menores de dez anos para baixo, lhes darão doze círios para serem acompanhados até à sepultura somente, e nenhum para arder em casa, e com tal declaração que falecendo qualquer mareante ou pescador, casando sua mulher com homem de terra que não for pescador ou marítimo, não gozará dos ditos sufrágios e ofícios, e o mesmo se entenderá nos filhos dos homens do mar que não tiverem seu ofício e filhas que casarem com homens de terra.
4- E quando falecer algum dos irmãos ou suas mulheres, concorrendo eles com as esmolas de meio tostão, referidas neste compromisso, e filhos de maioridade, os mordomos mandarão tanger o sino às horas do enterramento e todos os irmãos que se acharem no lugar serão obrigados a acudir à ermida para acompanharem o defunto à sepultura, com sua cruz, vestes e cera necessária, que na confraria para isso deve haver, e o que sem justa causa faltar, por cada vez pagará vinte réis para a confraria, que será multado pelo vigário a requerimento dos mordomos.
5- Ordenarão mais que suprida a dita confraria de todas as coisas necessárias, dos sobejos das esmolas adquiridas possam os mordomos fazer algumas esmolas, de forma moderada, aos mareantes enfermos e necessitados, com parecer e conselho dos mordomos, escrivão e arrecadador da dita confraria, concordando nisso todos por termo que assinarão; e da mesma maneira, havendo sobras poderão valer por empréstimo, nalguma urgente necessidade, razoavelmente ou do que carecer, a pessoa necessitada, dos mesmos irmãos da dita confraria, concorrendo todo como dito é, no tal conselho, de que farão termo.
6- Porque não é justo nem de razão que os pescadores que com o seu braço e perigo de vida estão ganhando sobre as águas do mar meia parte para a confraria do Corpo Santo, deixem de lucrar a esmola do hábito que por obrigatório deste compromisso faz a dita confraria, aos pescadores casados e suas mulheres: ordenarão o juiz, tesoureiro, e mais mordomos e escrivão da confraria, se desse a mesma esmola de três mil réis a todo o filho de homem do mar que no ofício de pescador ganhar no barco em que andar, uma parte, o que constará por depoimento do arrás do seu barco, e assim mais ordenarão que os companheiros dos barcos de carreira que deles forem efetivos (o que constará também por depoimento dos arrases) se lhe dê a mesma esmola de três mil réis para o hábito.
7- Ordenarão mais, que o tesoureiro desse por conta da confraria dois religiosos para acompanharem o funeral do irmão que falece, mulher ou homem, três mil réis, para ajuda de sua mortalha e enterramento.
Na vila da Calheta houve também uma associação de marítimos sob o patrocínio de S. Pedro Gonçalves Telmo. Erguia-se a ermida na margem da Ribeira, próximo à foz, e foi destruída no séc. XVII.
O santo que acendia lumes nas caravelas gementes, ao furor da tempestade, eletrizando as vergas do velame e fazendo baixar labaredas em fogos de santelmo, pelo cordame alcatroado, foi a pouco e pouco dando primazia ao apóstolo mais antigo, S. Pedro, o Pescador.
Nota – a informação aqui disponibilizada foi compilada e gentilmente cedida pela Biblioteca Municipal de Câmara de Lobos.