Tavira - Roteiro de S. Telmo

A Igreja de S. Pedro Gonçalves Telmo, popularmente chamada de Nossa Senhora das Ondas, e que fica situada no centro da cidade de Tavira, acaba de ser reaberta depois de um profundo restauro da iniciativa e responsabilidade da Câmara Municipal de Tavira. O templo foi erguido no séc. XVI seguindo as correntes do renascimento, tendo sido reconstruída em 1756 após o terramoto, salientando-se a grandeza do seu teto de caixotão em madeira, pintado no estilo rococó por Luís Pereira. A Igreja foi sempre o templo de eleição dos mareantes e pescadores de Tavira organizados na Corporação do Corpo Santo também chamada de Compromisso Marítimo.


Parte importante da camada popular de Tavira era composta por pescadores e mareantes, os quais se agregavam na Corporação do Corpo Santo, vulgarmente conhecida por Compromisso Marítimo. De caráter religioso, esta associação de solidariedade corporativa ou confraria zelava pela regulação e arbitragem de aspetos profissionais da classe e planeava a assistência na doença, velhice, invalidez e pobreza relativamente aos seus membros. A seu cargo estava a gestão de um hospital privativo, ao qual se alude na carta de privilégio atribuída por D. Manuel I a 10 de Fevereiro de 1497, autorizando os mareantes de Tavira a elegerem entre si, em cada ano, um juiz para tomar conhecimento e executar as determinações da dita confraria. De um modo geral, os monarcas sempre se mostraram generosos para com esta e outras confrarias de mareantes algarvias, concedendo-lhes privilégios e isenções em reconhecimento dos serviços por elas prestados à navegação, à assistência, à economia, à segurança costeira, entre outros gestos de caráter patriótico.
Sabemos que a corporação de Tavira vem desde o século XV e que o seu primeiro compromisso, ou seja, os estatutos a que ficavam obrigados os seus confrades, terá tido origem no século XVI, copiando o modelo do compromisso dos mareantes de Faro de 1529. Há notícia de um outro compromisso redigido mais tarde, em 1783, em substituição de um antigo que se havia perdido, sendo confirmado pelo Desembargo do Paço em 1793. Entre as várias normas preceituadas, destaca-se a que determina a responsabilidade da confraria em manter e conservar a Igreja de S. Pedro Gonçalves Telmo, santo padroeiro em honra do qual se fazia uma festa, anualmente, no domingo seguinte à Pascoa. Neste dia era também eleita a Mesa da corporação, composta pelo Juiz, Escrivão e Tesoureiro ou Recebedor, sendo eleitores todos os mestres dos barcos, que logo após a eleição da Mesa votavam novamente para escolher “doze eleitos que hão-de servir para os negócios de maior ponderação que se não podem resolver somente entre oficiais”. Entre outras obras pias, cuidava a confraria de despender esmolas para os mareantes pobres e para outras necessidades públicas, além de custear os enterramentos e os inevitáveis sufrágios pelas almas dos confrades mais desfavorecidos, “pois que quando puderam trabalhar, ganharam para ela (confraria), e a sua pobreza os chegou a necessitarem desta esmola tão pia”. Para tal, concorriam com parte dos seus ganhos todos os que estivessem alistados na corporação marítima.
No seio da corporação tomavam-se resoluções relativas às regras da profissão que todos se comprometiam a observar, ao mesmo tempo que se afirmava um desejo de intervenção social mais alargada, traduzido na necessidade de marcar uma imagem pública. As procissões da cidade eram propícias para os mareantes manifestarem a sua coesão e poder diante de diversos grupos urbanos, dando o número dos seus membros a ideia da sua força relativa – que seria notável em alguns períodos da história de Tavira. Com tão favorável conjuntura social, não tardou a Confraria do Corpo Santo em assumir empenhadamente a necessidade de edificar uma cas que refletisse materialmente, e em justa medida, o prestígio e a relevância da classe dos pescadores e mareantes da cidade – de acordo, aliás, com o quadro de desenvolvimento construtivo de Tavira, nesta época impulsionado por um ativo mecenato de nobres, burgueses e clérigos empreendedores, dinâmicos e dotados de recursos, apto a ornamentar os seus templos e palácios com obras de valia artística. A partir da década de 1530 deram os mareantes início à construção da sua Igreja de S. Pedro Gonçalves Telmo. O sismo de 1755 terá causado danos a esta igreja quinhentista, determinando a sua reconstrução parcial no ano seguinte, pela mão do mestre Diogo tavares de Ataíde, nos termos ajustados em contrato entre este e a Mesa da Confraria do Corpo Santo a 11 de Setembro de 1756. Foi então restaurado o templo com manutenção da capela-mor, reconstrução de paredes da nave e com atualização do estilo no novo pórtico, agora com frontão triangular fechado encimando as armas reais envoltas num decorativismo rocaille.
Após a reconstrução da igreja, a confraria do Corpo Santo adquiriu o edifício em anexo para em seu lugar construir a casa do despacho, cujas obras principiaram em 1781. Depois de várias reformas estatutárias impostas pela monarquia constitucional ao longo do séc. XIX, este e outros Compromissos Marítimos foram extintos e substituídos pelas antigas Casas dos Pescadores, criadas pelo Estado Novo Corporativo (Lei nº1953 de 11 de Março de 1937).
O compromisso de 1530 – na prática um traslado do compromisso dos mareantes de Faro de 1529 – é explícito quanto à reverência a ter com um dos Mandamentos da Igreja, estabelecendo, como princípio regulador que: “ nenhuma pessoa, nem nenhum pescador de nenhuma arte do mar, não pesquem ao domingo com nenhuma rede, seja de cerco, como xávega, por nenhuma maneira e modo que seja, assim ao domingo, como aos dias de Nossa Senhora e pescando, qualquer pessoa por qualquer maneira sem nenhum temor a Deus, nem acatamento da Santa Madre Igreja, em tais dias, que todo o pescado seja perdido para a Confraria do Corpo Santo”. Assentado o princípio geral, com base nas leis da Igreja (3º Mandamento: guardar os Domingos e Dias Santos), se deduz a reserva daqueles dias para os mareantes cultivarem a sua vida religiosa, participando na missa, abstendo-se de tomar parte em quaisquer atividades e negócios que impedissem o culto a ser prestado a Deus.
Também por razões de culto, o compromisso de 1783 preconizava que se tratasse sempre a igreja de S. Pedro Gonçalves Telmo “com aquela perfeição e grandeza que anteriormente se tem praticado, pela obrigação de católicos, que temos de honrar, e louvar ao nosso Criador e Redentor”, motivo pelo qual a corporação mantinha por sua conta um sacristão e um capelão que zelavam pelo edifício e asseguravam a missa diária, que ocorria às onze horas da manhã, “por ser tão útil ao Povo”.
A festa do Glorioso S. Pedro Gonçalves, patrono e padroeiro dos mareantes, tinha lugar no Domingo in Albis, ou seja, no primeiro Domingo depois da Páscoa, por constar que o Santo faleceu nesse mesmo dia. Nesta data, celebrada pela Confraria com a possível grandeza expunha-se o Santíssimo e ofereciam-se dois sermões, de manhã e de tarde.
Chegado o mês de Novembro, em memória dos irmãos já falecidos, a confraria celebrava na sua igreja o “Aniversário das Almas dos Mareantes defuntos, com Ofício, e Missas dos Padres, que se quiserem chamar, pela esmola costumada”.
Em Tavira, o percurso histórico da Confraria do Corpo Santo ficou igualmente ligado à devoção Mariana, como bem ilustra a devoção e nome pelo qual também é conhecido o seu templo: Igreja de Nossa Senhora das Ondas. Na base desta devoção está uma imagem tida por milagrosa, cujas origens estão envoltas num mistério revelado por Frei Agostinho de Santa Maria no seu célebre Santuário Mariano:
“ Nesta Igreja de S. Pedro Gonçalves Telmo colocaram com justa razão, uns venturosos pescadores, uma Milagrosa Imagem da Rainha dos Anjos, a quem deram o nome das Ondas, de donde a livraram ou onde lhes apareceu, cuja aparição e manifestação se refere por tradição”.
A dita imagem de Nossa Senhora das Ondas – escultura seiscentista em madeira estofada e policromada, com certa influência artística das esculturas importadas da Flandres no séc. XVI – pode ser hoje venerada no seu retábulo do lado da Epístola, crendo-se ser esta a que foi descoberta pelos pescadores tavirenses no relato de Frei Agostinho de Santa Maria.
Na escultura de S. Telmo existente na Igreja de Nossa Senhora das Ondas, o santo enverga o hábito dos dominicanos, com uma embarcação na mão esquerda, adivinhando-se na mão direita um segundo atributo, já em falta, que seria um círio com a chama do “fogo-de-santelmo” – fenómeno atmosférico que ocorria durante as tempestades no mar, quando em certas partes da embarcação apareciam luzes das descargas elétricas, sinal interpretado pelos mareantes como sinal da proteção do santo e prenúncio de bonança. Assim concebida, a escultura evoca perante os fiéis a miraculosa aparição do santo, sob a forma de “fogo-de-santelmo”, durante as aflições vividas em alto mar.
É interessante notar que, com a extinção do Compromisso Marítimo de Tavira e sua substituição pela Casa dos Pescadores (em 1941), ao abrigo da Lei criada pelo Estado Novo Corporativo (Lei nº 1953 de Março de 1937), se manteve viva a devoção a S. Pedro Gonçalves Telmo, conservando-se este como patrono dos pescadores tavirenses. Isso mesmo se refletiu na composição do emblema e bandeira da antiga Casa dos Pescadores, claramente inspirados na escultura setecentista do padroeiro. Segundo a heráldica, no emblema lavrado na bandeira entram como esmalte o ouro, representando o sol e significando riqueza, constância e fé; a prata, representando a paz e significando também riqueza; o vermelho, representando o calor e significando força, vida e alegria; o verde representa o mar e significa esperança e abundância; o negro representa a terra e significa firmeza, honestidade e modéstia. As faixas onduladas representam o mar, surgindo destacada a imagem do patrono S. Pedro Gonçalves Telmo, com seus atributos e assente sobre uma peanha de ouro onde está escrito o seu nome. Envolve a figura um listel com a designação do organismo em carateres negros. Com a extinção da antiga Casa dos Pescadores, após o 25 de Abril de 1974, foi esta bandeira transferida para Lisboa. Repousa hoje junto ao Tejo, no Museu da Marinha.

Nota – a informação aqui disponibilizada foi gentilmente compilada e cedida pelo Arquivo Municipal de Tavira.

 

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