Num quadro do séc. XVII, do Convento de Corpus Christi, em Vila Nova de Gaia, aparece S. Pedro Gonçalves Telmo, entre S. Cosme e S. Damião, patronos dos médicos, mas também protetores dos navegantes.
No retábulo, o santo dominicano segura na mão esquerda a vela acesa e soergue na direita uma pequena nau com a bandeira da Cruz.
O Convento de Corpus Christi, pela sua situação ribeirinha, contar-se-ia como um lugar de romagem dos mareantes portugueses. (1)
O convento foi fundado em 1345 por D. Maria Mendes Petite, uma fidalga de Gaia, filha de Soeiro Mendes Petite, viúva de Estevão Coelho e mãe de Pero Coelho, um dos responsáveis pelo assassínio de D. Inês de Castro. A família estava ligada à fundação do poderoso Mosteiro de Grijó.
A fundadora dedicou o Convento ao Augusto Sacramento da Eucaristia, dotou-o de avultados bens e entregou-o à Ordem de S. Domingos, filiando-se no Mosteiro de São Domingos das Donas de Santarém. Um conflito jurídico com o Bispo do Porto, que à época se opôs à sua fundação, provocou atraso significativo na abertura do convento o que só veio a acontecer apenas em 1354.
A primitiva igreja do convento sofreu uma degradação gradual devido às cheias do rio Douro (junto ao qual se localizava), o que levou à edificação de um novo templo, cujas obras tiveram início na segunda metade do séc. XVII com traça do padre Pantaleão da Rocha de Magalhães – responsável por várias obras no Porto e arredores -, seguindo o modelo do templo lisboeta do Mosteiro do Bom Sucesso de Santa Maria de Belém, pertencendo à mesma ordem, e ajustado, nos coros, ao local e às necessidades da congregação, por Gregório Fernandes. Já
no séc. XVIII foi construída a fachada em estilo barroco que antecede o portal da igreja, e onde é patente a influência de Nicolau Nasoni.
As funções conventuais extinguiram-se em 1894 com a morte da última freira, Marcelina Cândida Viana. Em 1930, o edifício foi entregue às irmãs do Instituto do Bom Pastor que criaram um Instituto Feminino de Educação e Regeneração. O aumento das internadas levou à construção, em 1940, da ala poente do convento, de arquitetura tipicamente Estado Novo.
No início da década de 1990, tendo-se retirado as religiosas, foi o conjunto entregue à Ordem Soberana e Militar de Malta, que através da Fundação Frei Manuel Pinto da Fonseca, continuou a afirmar o antigo convento como centro de apostolado. Revertendo para a Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia em 2003, o convento sofreu recentes obras de remodelação, albergando agora um espaço cultural – o Espaço Corpus Christi –e ainda um Pólo de mestrado da Faculdade de Belas-Artes da Universidade do Porto.
A igreja de conceção centralizada, organiza-se ao longo de um eixo, com nave de planta octogonal abobadada, capela-mor a nascente e coros a poente, rematada por uma cúpula.
Em termos artísticos, destacam-se os quatro altares laterais (com imagens de rara beleza), o Coro-Alto (espaço da primeira fase do barroco, constituído por um cadeiral distribuído em dois níveis, com formato de “U” e talha dourada), o teto formado por 49 caixotões decorados com pinturas a óleo sobre madeira. A pintura e a imaginária que decoram a igreja (teto do coro alto, espaldar do cadeiral e retábulos) apresentam uma iconografia que se enquadra nas temáticas da Ordem, representando Santos, Doutores da Igreja, figuras dominicanas e outras, com destaque para três devoções principais: o Santo Rosário, o nome de Jesus e a Eucaristia. O cadeiral, da primeira metade do séc. XVII, para as horas do ofício e para as reuniões conventuais, apresenta a particularidade de, em cada assento, existir uma carranca diferente, representando negros ou exóticos, e espécies animais e vegetais e, cada voluta ser uma máscara esculpida, cada uma diferente das demais, sugerindo influência do Império Ultramarino.
Encontram-se aqui sepultadas D. Leonor de Alvim, esposa do Condestável D. Nuno Á, e sua avó, D. Maria Mendes Aboim, falecida em 1355 e fundadora do convento; também se encontra aqui a arca tumular de Álvares Anes de Cernache, primeiro senhor de Gaia, que foi alferes da bandeira da Ala dos Namorados na batalha de Aljubarrota (1385).
Vejamos agora as origens e a evolução do culto dos mareantes a S. Telmo, em Gaia, e como o mesmo se misturou e por vezes se confundiu com a devoção por outros santos.
Desde o tempo dos romanos que são celebradas as festas das Calendas Ianuarii (as calendas de Janeiro) com grupos de populares a dançar e a cantar ao som dos tambores e outros instrumentos em peregrinação até aos templos, no início de cada novo ano. Tais celebrações sobrevivem ainda hoje em Vila Nova de gaia através de três cortejos de festeiros: os Mareantes do rio Douro e as “Comissões” Nova e Velha da Rasa que todos os anos, no domingo após o dia 10 de Janeiro, vão em romagem até à igreja de Mafamude.
Ninguém poderá dizer ao certo quando começou a ser celebrada em Vila Nova de Gaia, pois as tradições populares, regra geral, não aparecem descritas nos documentos.
Sabe-se apenas que o aspeto atual desta festa terá tido como fator de continuidade as dispensas de vária ordem concedidas no início do séc. XVII a pescadores e barqueiros para andarem a recolher esmolas destinadas a suportar os custos da canonização de S. Pedro Gonçalves Telmo e de S. Gonçalo de Amarante, no primeiro caso um padroeiro galego dos pescadores e mareantes e no segundo um santo ligado a um afluente do Douro (Tâmega).Celebrado em Amarante, no convento de sua invocação, com uma festa religiosa em Janeiro, a romaria popular foi porém transferida para o mês de Junho e integrada no ciclo das festas do solstício de Verão que ocorrem um pouco por todo o lado. Somente em Vila Nova de Gaia e em Aveiro se celebra ainda a festa de S. Gonçalo no domingo seguinte ao dia 10 de Janeiro.
No entanto é de crer que o atual festejo a S. Gonçalo, sucede e é a continuidade dos festejos que os homens do mar dedicavam desde longa data a S. Pedro Gonçalves Telmo, invocado sob o nome de Corpo Santo ou Santo Corpo Santo, devido à sua ligação a Vila Nova de Gaia que se pode alicerçar nos seguintes pontos:
– é conhecida a frequente ida de pescadores de Gaia à Galiza no séc. XIII, conforme atesta o foral de 1255, portanto na época em que teria vivido o santo, pois morreu em Tui, então ainda bispado português, em 1246.
– no Convento dominicano de Corpus Christi de Vila Nova de Gaia (versão canónica do Corpo Santo de Cristo) fundado no séc. XIV, existe um retábulo do séc. XVII que representa S. Pedro Gonçalves Telmo entre S. Cosme e S. Damião, sendo conhecida a devoção a este Convento por parte dos mareantes. Também aqui se deve ter dado a substituição do culto de S. Pedro Gonçalves Telmo pelo de S. Gonçalo, com a coincidência de ambos terem sido dominicanos. Aliás, a confusão entre estes dois santos começa com os dados biográficos que lhes são atribuídos pelos hagiógrafos, com uma sobreposição das narrações lendárias, pelos atributos miraculosos, pela indumentária nas representações iconográficas o que leva a que as vidas de ambos são praticamente paralelas.
Quanto à evolução histórica dos cultos aos vários entes protetores dos homens do mar, a mesma pode ser sistematizada da seguinte forma:
– Séculos XIV a XVI – difusão do culto do Corpo Santo (S. Pedro Gonçalves) entre os homens do mar e de S. Gonçalo de Amarante no interior.
– Século XVI – distinção cultural entre S. Pedro Gonçalves e S. Gonçalo de Amarante e respetivos processos de canonização.
– Século XVII – tentativa em Portugal da imposição filipina do culto a S. Pedro Gonçalves Telmo. Reação nacionalista dos homens do mar portuguese faz esquecer aquele santo galego, promovendo S. Gonçalo de Amarante como seu protetor. Os mareantes do Algarve, onde o culto de S. Gonçalo de Amarante é divulgado por via eclesial, passam a venerar S. Gonçalo de Lagos, eremita medieval com uma biografia muito semelhante ao seu homónimo de Amarante.
– Século XVIII – predominância entre os marítimos do culto a S. Gonçalo de Amarante que entretanto também vai sendo substituído pelo culto a Maria com a designação de Nossa Senhora dos Navegantes e outras.
– Século XIX – o culto de S. Gonçalo é substituído pelo da Senhora da Bonança e Senhora da Nazaré. Sobre a canonização de ambos os santos, que bem depressa o fabulário popular aglutinou num só S. Gonçalo, vejamos alguma documentação: em Dezembro de 1608 o Presidente da Mesa da Consciência e Ordens autorizou que se pescasse aos domingos e dias santos, sem pagamento de direitos à fazenda real, para que o produto recolhido da venda do peixe fosse canalizado para as despesas da canonização de ambos os santos.
1- A 19 de Novembro de 1610, reinando Filipe II, é publicada uma outra provisão da Mesa da Consciência e Ordens que isentava de direitos as pescarias feitas aos domingos e dias santos realizadas em favor da canonização de S. Pedro Gonçalves Telmo e S. Gonçalo de Amarante.
2- A 28 de Maio do Ano seguinte é emitido um alvará que proíbe a pesca aos domingos e dias santos feita com aquela intenção. Proíbe igualmente o pedido de esmolas e determina que o negócio da dita canonização cesse logo, assim neste reino como fora dele. Para além de tais atividades não pagarem direitos a el-rei, este alegava estar informado de alguns excessos e desordens cometidos na cobrança das esmolas.
A tentativa de canonização dos dois Gonçalos tinha começado antes, quando D. João III consegue de Pio IV a sentença de beatificação do amarantino em 1561 e em 1593 quando Filipe II emite uma provisão régia para a canonização do santo de Tui, talvez na tentativa de agradar aos mareantes portugueses seus devotos. Quando é tornada pública a provisão a favor da canonização de S. Pedro Gonçalves Telmo, a Câmara de Lisboa lembra a canonização do santo de Amarante, alvo de contínuas e numerosas romagens dos seus devotos, mas que se faziam antes em honra do santo de Tui. Porém a associação dos dois santos teve o efeito contrário às intenções filipinas e estará na origem do motivo patriótico que levou os homens do mar portugueses a esquecerem o S. Gonçalo “espanhol” e a trocarem-no pelo nacional, isto é, pelo de Amarante, fenómeno que se repete no Algarve com o S. Gonçalo de Lagos.
Regista-se ainda que em Vila Nova de Gaia existiu também uma ermida dedicada a S. Pedro Gonçalves Telmo, perto ou mesmo anexa à igreja matriz, que pertencia a um José Vaz e demolida, ou pelo menos desafeta ao culto deste santo quando em 1394 se funda a Confraria do Corpo Santo de Massarelos, com sede na Capela de seu nome naquela povoação de mareantes da margem direita do rio Douro. A partir de então esta confraria passa a representar todos os homens de mar que saíam pela barra do Douro, independentemente do porto de origem e com isso adquire grande prestígio e riqueza, mantendo até hoje a invocação do Corpo Santo, isto é, de S. Pedro Gonçalves Telmo. (2)
(1)- informações recolhidas no livro “Fogo de Santelmo” de Augusto César Pires de Lima de 1943.
(2)- informação gentilmente cedida pela vereação da cultura da Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia através do Espaço Corpus Christi que inclui diversos artigos nomeadamente um publicado na revista de Ciências Históricas de 1992 da autoria do Professor Gonçalves Guimarães. As fotos foram também cedidas pelo Espaço Corpus Christi.