TERTÚLIA: “Música com História XI”
Com | Joel Cleto, Miguel Araújo, Ana Bacalhau, Júlio Machado Vaz
Organização | Confraria das Almas do Corpo Santo de Massarelos
Grande Auditório da Casa de Vilar
11 Mai 2025 | dom | 16:00



Corria o mês de Março de 2020 em crescente sobressalto quando, no dia 13, o Estado de Alerta era decretado em todo o país devido ao Coronavirus. No noite anterior, o Auditório da Faculdade de Economia da Universidade do Porto recebia a primeira edição do “Música com História”, evento que a Confraria das Almas do Corpo Santo de Massarelos punha em marcha, sem outra ambição que não a de poder servir para angariar os fundos necessários à prossecução de uma obra religiosa, social e cultural de enorme valor e interesse. Como sabemos, a iniciativa “pegou de estaca” e, desde então, tem vindo a conquistar um lugar muito especial na vida da comunidade. Com a paixão de Joel Cleto na contextualização histórica e o talento e carisma de Miguel Araújo na condução musical, o “Música com História” é hoje um verdadeiro caso de estudo, com os 1300 lugares do magnífico Auditório da Casa de Vilar a mostrarem-se cada vez mais insuficientes para uma procura que não cessa de aumentar. Assim foi, uma vez mais, no passado domingo, numa edição – a décima primeira – que contou com dois convidados muito especiais: O médico psiquiatra e comunicador Júlio Machado Vaz e Ana Bacalhau, uma das vozes mais marcantes da música contemporânea portuguesa.
A evocação de um conjunto de efemérides serviu de fio condutor da sessão, começando pelos 50 anos das primeiras eleições livres em Portugal após o 25 de Abril e na Carta Constitucional daí resultante, e terminando com os 630 anos da Confraria das Almas do Corpo Santo de Massarelos e do assinalar a data com a criação de uma nova valência, a Academia Paulo Vallada – Universidade Sénior, com o objectivo de fomentar o envelhecimento activo. Pelo meio, como habitualmente, a música e as palavras foram-se sucedendo e alternando, acrescentando interesse e graça a quase três horas de partilha de ideias, conhecimento e diversão. Diversão que se afirmou logo no primeiro tema cantado por Miguel Araújo e que resultou de uma escolha de Júlio Machado Vaz: “Os Maridos das Outras”. Estava dado o mote para uma extraordinária sessão, vincadamente conceptual (e creio que isto não terá sido planeado), em torno do que somos aos olhos dos outros e do que os outros são aos nossos olhos. Já Ana Bacalhau, com o apoio de Eugénia Contente na viola acústica, cantou “A Bacalhau”, espécie de “hip-hop tuga” com letra de Capicua, e que funcionou como uma autêntica “carta de apresentações”. “Dona Laura”, um dos grandes êxitos de Miguel Araújo, foi a escolha do público e deu azo a uma reflexão sobre a forma como os filhos são induzidos pelos pais a seguir-lhes as pisadas – “o que não é desejável”, Júlio Machado Vaz dixit.
“Todos nós, de manhã, abrimos a porta e pomos algum tipo de máscara”, assevera Machado Vaz, depois de Ana Bacalhau ter dado a ver um pouco daquilo que é como pessoa. Se dúvidas restassem, “Sou Como Sou” estava ali à mão para o provar, reafirmando três das suas características mais notórias: “Forte, capaz, mulher”. A conversa prosseguiu em torno do empoderamento da mulher, da masculinidade tóxica, da violência no namoro ou do “sexo dos anjos”, abrindo as portas à primeira incursão de Joel Cleto na História ao falar de Ana Plácido, do seu talento para as letras (poesia e tradução), das paixões que suscitou e do ciúme que Camilo terá, hipoteticamente, sentido por tão requestada companheira. “Ciúme” que foi a canção seguinte, brilhantemente interpretada a meias por Ana Bacalhau e Miguel Araújo, e que voltou a permitir a Júlio Machado Vaz falar do ciúme como algo que pode ser considerado natural e resultante de um acto de amor, em contraponto com o “ciúme que implica posse” e que nada tem a ver com amor, transformando-se numa das causas mais frequentes de violência doméstica.
As paixões e o seu lugar nos lugares do Porto é o tema de conversa que se segue, com Joel Cleto a rumar ao norte da cidade, ao encontro da Fonte das Sete Bicas e do desejo de um mareante de ter um filho. Estamos no século XVI e o desejo deste Aleixo Fernandes – assim se chamava o mareante – é aceite. Serão precisamente as águas milagrosas desta “mãe d’água” a alimentarem, ainda hoje, a chamada “Fonte das Sete Bicas”, lugar de romaria anual ligada a Nossa Senhora da Hora e ao culto Mariano e que a canção portuguesa imortalizou pela voz de Maria Clara. Ora, para quem não sabia – o que talvez fosse o caso da maioria -, esta Maria Clara era mãe de Júlio Machado Vaz e a passagem da música, com a imagem da cantora a surgir nos ecrãs, resultou num momento de enorme emoção, com o psiquiatra a falar de surpresa, “deliciosa, mas difícil de digerir, e de saudade: “Diz-se que o tempo cura tudo, mas em Lordelo do Ouro não”.
A espontaneidade de Ana Bacalhau, a elegância de Júlio Machado Vaz e o “savoir faire” dos dois anfitriões fez com que nem se desse pelo tempo passar. Ana Bacalhau ainda cantou “Por Nos Darem Tanto”, com letra de A Garota Não, e “Seja Agora”. Joel Cleto ainda lembrou Augusta de Montléart, autora da Capela de Carlos Alberto e que ficou conhecida na Polónia como “Princesa dos Camponeses”. Miguel Araújo ainda nos trouxe a “cobardia” que se esconde na “Dança de um Dia Normal”. E Júlio Machado Vaz, a propósito de uma mezinha milagrosa preparada por uma congregação de religiosas da cidade, ainda admitiu que “dar vinho a quem já está com icterícia é de uma fé extraordinária”. A última canção, interpretada por Miguel Araújo, fechou na perfeição um ciclo intimista e de revelações únicas, ao falar de um dos handicaps do cantor, da “noção de mim”, em “Talvez se eu Dançasse”. Talvez agora se perceba melhor a ideia de conceptualidade de que falei no início e se conclua por ter sido esta uma das melhores sessões do “Música com História” até hoje. Nas palavras finais, José Carlos Gonçalves, Juíz-Provedor da Confraria, perdoou os convidados por terem proferido a palavra “Benfica”, abordou com entusiasmo o projecto da Academia Paulo Vallada e, sem revelar nomes, falou de um grande momento para a décima segunda sessão do “Música com História”: “Vai ser puro rock’n’roll!”, prometeu.
in Blog “Erros meus, má fortuna, amor ardente…“